Dois contos pícaros da minha autoria publicados neste livro comemorativo do 1º Concurso Literário Edições Vieira da Silva
O MANEQUIM DA SENHORA CLOTILDE
CABRITO ASSADO NO FORNO
«Eram dez horas da manhã
quando a notícia correu aos quatro ventos de boca em boca. Lopes, o
encarregado-geral da empreitada, havia informado um dos operários que o
engenheiro da Câmara oferecia um cabrito assado no forno, no Alívio dos Mortais,
caso terminassem a obra naquele dia.
- Quem paga? – perguntou um dos
calceteiros.
- O engenheiro Morais ou a Câmara
Municipal, que interessa!
- Quem é o engenheiro Morais?! –
volveu o homem na sua ignorância.
- É um novato que chegou aí há
instantes a mando da Câmara. Quer mostrar serviço ao superior. Rapazes, é um
quilómetro de estrada! Tem de ficar pronto antes de escurecer.
Feito o acordo, os homens deitaram
mãos à obra. Com efeito, ao meio-dia em ponto, tinham empedrado quinhentos
metros de estrada. Um feito extraordinário! Nunca em Portugal até àquela data
se trabalhou tanto e em tão pouco tempo.
Entraram
no restaurante. Eram doze homens para encher uma mesa comprida.
-
Este cabrito merece ser regado com um bom vinho! – atirou o engenheiro Morais.
- Borba! – exclamou Lopes, de
pronto.
Comeu-se
e bebeu-se ainda melhor. A conversa enveredou para o futebol. Quando lhe
perguntaram quem iria ser o novo campeão, o engenheiro Morais não teve dúvidas:
- O Belenenses!
A tirada provocou um banho de riso
entre os calceteiros e pedreiros.
- Quem é o senhor Morais? – interrompeu
o servente.
- Eu mesmo! – respondeu.
- Está um senhor ao telefone. Deseja
falar consigo, urgentemente.
E
voltou dali a pouco à mesa, mas com o semblante carregado.
- Então Sr. Morais? – perguntou
Lopes, preocupado.
- Recebi
uma chamada da Câmara.
- Não se preocupe, Sr. Morais! –
exclamou Lopes. – Vá lá à sua vida que nós cá nos arranjamos.
E partiu. Vieram as sobremesas para
cima da mesa e um cheirinho de aguardente para quem quisesse. Quiseram
todos.
- É por conta do engenheiro Morais –
disse Lopes.
- Qual engenheiro?! – perguntou o
dono do restaurante.
Lopes telefonou de imediato para a
Câmara. Não havia nenhum engenheiro com o nome Morais. Quanto à obra, escusado
será de dizer que não ficou pronta nesse fim de tarde. Foram precisos mais dois
dias para que o troço estivesse finalmente operacional. Mas nem tudo foi mau.
Nesse ano, o Belenenses foi mesmo campeão de Portugal!»
Cabrito assado no forno
«Era uma vez um rapaz conhecido
na freguesia pelo «Funga», mas o seu verdadeiro nome era Amaral. Havia quem o
apelidasse de Al Pacino, o ator da Hollywood, devido às parecenças na
fisionomia. Usava jaqueta preta de cabedal puído, calça de ganga preta, t-shirt
preta, sapatilhas All Star pretas. Ganhou a alcunha por causa do pó branco que
snifava desde os quinze anos. Quando o produto
faltava, Amaral furtava uns quantos rádios. Os episódios sucediam, mas nem
sempre o Funga era responsável pelos roubos. Muitas vezes pagava o preço pela
fama sem tirar o proveito, acabando na prisão. De cacete em punho, o guarda
Sebastião recomeçava mais uma vez o interrogatório:
- Diz-me lá, ó Funga! O que te deu
na mioleira para fazeres aquela gracinha à senhora Clotilde?!
- Por favor, não me bata, Sr. Sebastião!
Fui eu! Fui eu! – suplicava Amaral quase a choramingar.
- Isso já nós sabemos! – exclamava o
guarda Sebastião, desferindo uma valente bastonada no lombo do prevaricador. –
É preciso ter muita lata para roubar o casaco à senhora Clotilde e a seguir
andar a exibir-se na rua à vista de todos!
- Tinha frio, Sr. Sebastião – dizia
o bardino, gemendo de dor.
- Ai sim? – Sorria o guarda, apalpando
o cacete. – Tenho aqui uma coisa que vai aquecer o lombo! – E o Funga levava
mais duas bastonadas nos costados que é para aprender a não mentir.
No
dia seguinte, a senhora Clotilde recebeu das mãos do guarda o casaco que lhe
pertencia por direito.
- Fique descansada que o ladrão está
na prisão. Pode voltar a pôr a sua peça na montra.
- Obrigada, senhor Sebastião. Posso
fazer-lhe um desconto – acudiu, piscando o olho ao guarda nacional republicano.
- Agradecido, mas não faz o meu
estilo.
- Que pena! Ficava tão bonito dentro
dele.
Passaram-se
três meses. Um novo escândalo rebentou na aldeia, provocando a indignação entre
os habitantes. O casaco da loja da senhora Clotilde voltara a desaparecer e,
para cúmulo dos cúmulos, o boneco tinha sido profanado. Em letras garrafais podia-se
ler no peito do manequim o seguinte trecho escabroso:
«O guarda Sebastião anda a comer a senhora Clotilde.»
E no baixo-ventre do modelo, dois
rolos de lã, um verde e outro vermelho, pendurados ostensivamente entre as
pernas do manequim. No meio, uma gravata amarela a combinar com as cores da
bandeira nacional portuguesa.»
O manequim da Senhora Clotilde